sábado, 5 de janeiro de 2013

o teatro que o mineiro faz

A cidade transforma seu cotidiano durante a Campanha de Popularização do Teatro e da Dança e o Verão Arte Contemporânea. Público, artistas, imprensa e poder público: vamos refletir sobre a nossa participação?


Durante o segundo semestre de 2012 escrevi comentários críticos de boa parte das estreias teatrais belo-horizontinas. Tenho conversado com algumas pessoas e estas têm me cobrado um balanço, uma opinião sobre o teatro mineiro como um todo. Bem, minha mais importante conclusão é que Belo Horizonte faz um ótimo teatro. Estéticas diversificadas são exploradas, formatos de criação e linguagem ousados saem da sala de ensaio para os palcos. No aspecto técnico respira-se um momento realmente importante. Há muitos bons atores, diretores, produtores, cenógrafos, iluminadores, etc. Há sem dúvida um profissionalismo, mesmo que as condições financeiras e mercadológicas não sejam as ideais, os artistas fazem peças cuidadosas e profissionalmente honestas.

Penso que na busca por exercer esse profissionalismo, colocando a ferramenta teatro a serviço do teatro em si, o artista mineiro parece, em comum acordo com a sociedade, se ausentar das problemáticas que são comuns a todos. Isso pode ser um movimento natural; para Max Horkbelmer “quanto mais intensa é a preocupação de um indivíduo com o poder sobre as coisas, mais as coisas o dominarão, mais lhe faltarão os traços individuais genuínos” (cf. Eclipse da Razão). Se alguém me perguntasse quais são as questões de muitos dos artistas de teatro de hoje, talvez eu não soubesse responder, apoiando-me apenas nos espetáculos a que assisti.

O que estou tentando dizer é que os aspectos técnicos e comerciais da arte parecem dominar o pensamento dos artistas. Talvez isso esteja acontecendo em todas as artes, não é algo exclusivo da cidade de Belo Horizonte e sim de todo o mundo ocidental; mas, como nesse momento estou cumprindo o papel de provocador do teatro, escrevo agora para os artistas do teatro mineiro. Gosto da definição de Roland Barthes, que afirma que “a crítica não é uma ‘homenagem’ à verdade do passado, ou à verdade do ‘outro’, ela é construção do inteligível de nosso tempo”. (cf. O que é a crítica).

Então me coloco em diálogo com os artistas para pensar um pouco sobre o cenário teatral de hoje. Penso honestamente que, em parte, falta ao nosso teatro o desejo de levar adiante a utopia de transformar a realidade. Percebo uma concordância com os modelos estabelecidos por nossa sociedade no ponto de vista do pensamento. Quais as razões?

Talvez fosse preciso que a arte e os artistas se capacitassem intelectualmente do ponto de vista da ousadia tanto quanto já se capacitaram técnica e comercialmente? Como disse, felicito o teatro mineiro por sua manipulação dos recursos técnicos para a atuação e demais elementos de encenação. Em minha opinião nosso teatro já goza de alto nível de profissionalização, mesmo comparado ao principal polo do teatro brasileiro que é a cidade de São Paulo, e outras com cena teatral desenvolvida, como Porto Alegre, Curitiba e Rio de Janeiro. Mas, como em boa parte de outras áreas da sociedade, o teatro mineiro aceitou o modelo capitalista como forma de despolitização que no Brasil está ainda mais associada à liberdade e emancipação política pós-ditadura militar. A maior parte do teatro mineiro parece viver hoje em concordância com o estabelecido, vive feliz e de certa forma alienado, deixando para o poder público pensar e resolver as questões humanas, sociais e políticas, desde que, de algum modo, financiem sua arte. Não se pode negar que há quem reclame por políticas públicas, mas no fundo esses artistas estão clamando por mais dinheiro para seus próprios projetos. É um tema importante, mas não é o único.

O que acredito é que estilo e conteúdo são inseparáveis e, em seu amálgama, precisam favorecer a transformação de informações em conhecimento.

DESPOLITIZAÇÃO
“O sono da razão gera monstros”
Título de um quadro do pintor espanhol Francisco Goya

Podem-se dizer muitas coisas. Que o teatro é uma arte que nasceu do ritual. Que as artes cênicas são um acontecimento, que têm o diferencial de retirar as pessoas de suas casas e tê-las em sua presença e participação como testemunhas de um acontecimento vivo, espetacular. Se pararmos por aqui já teríamos recursos de sobra para afirmar que o teatro é essencialmente político porque conta com a presença da plateia, do público, é uma reunião de pessoas.

Por que então, à exceção do momento festivo que vivemos nos meses de janeiro e fevereiro, as pessoas não vão ao teatro? Por que o teatro se tornou puro entretenimento? Sinto que o engajamento da arte com as questões históricas que estão se construindo hoje é a maneira mais arriscada, e a única importante, de conectar a arte ao mundo – de torná-la viva e imprescindível. O resto são apenas acontecimentos comuns. No geral, as peças estreadas em Belo Horizonte são acontecimentos comuns porque não carregam, ou não vão a fundo, nas problemáticas que vão além da linguagem. No teatro a despolitização é principalmente uma questão de não apontar através da obra alguma crítica à realidade. O caso é que as obras que não fazem nenhuma provocação no ponto de vista do pensamento são vazias.

No teatro mineiro vejo obras, e não estou falando apenas de comédias, fortemente marcadas por uma necessidade de agradar. Não acredito que a função da arte seja agradar. Claro que ninguém quer fazer uma peça para que não seja assistida. Brecht disse que antes de tudo o “teatro deve ser divertimento”, e esse é um ótimo conselho. Mas se olharmos para o teatro que ele fez e que até hoje é contundente, vamos observar que sua diversão era refletir sobre o ser humano e seu tempo; dava ao seu teatro uma função antropológica e social cuja utilidade era colocar em debate problemas comuns às pessoas que iriam assisti-lo.

Infelizmente percebo que a despolitização mora na raiz da sociedade brasileira contemporânea, é um problema social, mas, como artistas, as pessoas de teatro não podem aceitar isso passivamente. Por exemplo, não podem fazer a sua arte para qualquer público, para alcançar o maior número de pessoas possível. Economicamente é uma ideia sedutora, mas politicamente é um fiasco. Se a plateia está no cerne das artes cênicas, pensar nela é um dever dos artistas de teatro, é preciso saber o que está dizendo e para quem. Fazendo isso, a chance de elaborar algo importante é maior e, consequentemente, o público também será maior. Por outro lado, é preciso dar uma opinião sem ser unilateral, levar um assunto para debater, para que o público possa começar a elaborar respostas no momento em que as questões se colocam no palco e depois as levar para casa ou para uma reunião de amigos. Os espectadores devem sentir que aquilo que lhes foi dito pelo teatro, muitas vezes de forma abstrata ou metafórica, é uma problemática do seu mundo, algo que, como cidadão, tem o dever de responder para si mesmo, mas principalmente responder coletivamente, porque é uma questão coletiva.

É importante e um ideal social que após o contato com uma obra de arte o público vá para casa, para a escola, ou para a igreja portando perguntas. Embora o modo de vida instaurado diga que não temos muitas questões coletivas, elas existem e precisam ser refletidas. Devemos pensar sobre a sobrevivência do planeta; a desigualdade social; a necessidade de afeto e, a partir dela, a criação de uma visão coletiva da sociedade; a angústia da vida em um modelo individualista; a queda da moral e os contrastes da evolução humana; a esfera da morte e o sentido de existência; a formação cultural e intelectual das nossas crianças; enfim... questões que tornam o teatro uma arte política e humanista.

TEATRO: UMA ARTE HUMANISTA

É preciso reconhecer que o ser humano é o elemento indispensável para se fazer teatro. A relação entre ator e alguém que o assista, que só as artes cênicas têm em detrimento às outras artes, historicamente outorgou-lhe um apelo humanista que prega o reconhecimento da integridade do ser humano e sua capacidade de viver no mundo transformando-o. Historicamente o teatro se colocou como uma arte transformadora. No mundo todo, em todas as épocas da era moderna, é principalmente através da arte que o homem exerce sua inserção social, temporal e espacial na sociedade.

Em passado recente da cidade de Belo Horizonte, o papel político exercido pelo grupo “Teatro Experimental” e o “Grupo Trans-forma” de dança dividiram a responsabilidade com outros grupos de fora do estado em construir a noção do ser artístico brasileiro. São as perspectivas dispostas pela arte que, embora paradoxais, traduzem com profunda sensibilidade a dimensão complexa do homem como ser histórico. Harold Bloom diz que Shakespeare “inventou o humano” com suas peças de teatro. Fez isso porque ofereceu ao homem a possibilidade de enxergar através da arte facetas de sua personalidade até então desconhecidas. Da mesma forma, sem a arte não conheceríamos quase nada da cultura grega. Sem a arte não disporíamos de nenhuma sugestão do modo de vida de sociedades primitivas. É através das artes que temos contato com costumes e anseios do homem do renascimento.

Como uma atividade essencialmente humanista inserida na sociedade, o teatro deve negar a superioridade da vida contemplativa sobre a vida ativa, valorizar e reconhecer a efetividade da liberdade humana como sujeito construtor da história em sua dimensão social.


A MÍDIA, OS EDITAIS E/OU O PÚBLICO

O que ocorre atualmente é que os meios de comunicação de massa encontram pouca ou nenhuma dificuldade em fazer aceitar interesses particulares como sendo de todos os “homens sensatos”. Boa parte das estreias teatrais belo-horizontinas não foram devidamente repercutidas pela imprensa local que prefere dar foco ao que não é mineiro. Na televisão, que é ainda o meio mais influente, o teatro mineiro é quase que completamente ignorado. A TV Alterosa divulga as peças que estão em cartaz em seu teatro, mas ainda ignora o restante da programação local. Como ignorar a cultura produzida aqui, para as pessoas daqui? Penso que é um dever a ser cobrado por todos, público, artistas e principalmente os governos municipal e estadual. O mesmo acontece com todas as nossas artes, excetuando-se aquelas que de alguma maneira receberam notoriedade na impressa fora dos limites do estado.

Então, uma arte como o teatro que poderia ser participativa e se prestar à função de produção do pensamento de uma cidade, uma ferramenta da cidadania, está encerrada em inevitável ostracismo ideológico. Isso porque o teatro vai sempre refletir as necessidades políticas da sociedade que, grosso modo, se tornaram necessidades e aspirações individuais; sua satisfação promove os negócios e a comunidade, tudo parecendo constituir a própria personificação da razão, mas no fundo diminuindo o poder de mobilização em torno das questões sociais. Diante da degradação cultural do nosso tempo, onde a principal característica talvez seja a passividade com que assistimos o desmoronamento das entidades sociais, estaria o teatro mineiro conivente com o desmoronamento de si mesmo?

A participação do estado busca se ausentar das responsabilidades, está ligada ao formato de lei de incentivo “captação” que pode ser visto como uma espécie de manipulação totalitária, pois segundo Marcuse “o totalitarismo não é apenas a coordenação política terrorista da sociedade, mas também uma coordenação técnica econômica não terrorista que opera através de manipulação das necessidades pelo capital investido.” (cf. Ideologia da Sociedade Industrial). Sujeito à aprovação da maioria, pautado na cartilha do que é amplamente aceito, os departamentos responsáveis dentro das empresas vão financiar projetos que cumpram as “necessidades pelo capital investido”. Ou seja, retorno de mídia na afirmação das similaridades, reforçando o que já é sucesso.

O problema é que a vitalidade na arte é um resultado de articulação, energia e diferenciação. Toda grande arte é diferenciada. Por outro lado, a consciência de que as coisas ao nosso redor diferem entre si toca a origem dos nossos medos. Se por um lado, como espectador, me sinto mais confortável em perceber similaridades com o meu modo de pensar, por outro, entendo que os artistas devem aceitar o medo das diferenças a fim de criar uma arte vital. O público que assiste uma arte diferenciada será provocado, terá medo e vai gerar oposição. Essa oposição gera prazer intelectual, gera reflexão e pensamento crítico, toca em questões políticas e morais, toca em questões psicológicas inconscientes. Nesses estágios estão a importância da arte e do teatro, é onde ele colabora com a formação da cultura de um povo, contribuindo positivamente no estabelecimento de uma identidade belo-horizontina.

Enquanto briga pela aprovação nos editais e captação nas empresas, o teatro parece não perceber que há algo de errado na relação com seu financiador mais precioso: o público. Já ouvi alguns artistas amigos meus afirmando que se houvesse tanto público quanto há na campanha durante o resto do ano, muitos artistas mineiros viveriam exclusivamente da sua arte. Enquanto na campanha a plateia se dirige em massa para os teatros, buscando diversão e entretenimento, durante todo o ano, apesar de um cenário profissional, diversificado e bem feito, as plateias estão vazias. Uma das consequências é que poucos produtores se arriscam em uma temporada um pouco mais longa. Esse ano muitas estreias tiveram o número restrito entre uma e quatro apresentações. Por quê?

TEATRO TRANSFORMADOR

Como os artistas de teatro em Belo Horizonte responderiam a pergunta retórica: como a arte pode mudar o mundo hoje?

Falando de um passado recente e sua participação no teatro de Belo Horizonte na década de 70, Pedro Paulo Cava disse o seguinte em entrevista à Glória Reis:

“Fazíamos uma arte engajada. Tenho saudades desta época, desta Belo Horizonte pequena, mas instigante, em que os artistas tinham furor de aprender, de discutir, de mobilizar-se. Numa mesma mesa de bar reunia-se um universo eclético, variadíssimo, de pessoas discutindo a cidade, a vida, os rumos, querendo transformar o Brasil, não só através da arte, mas de sua ação nas várias profissões. O teatro estava em função daquilo que acredito ser o seu papel: agente transformador de uma realidade social”. (Cf. Cidade e Palco).

Hoje tenho medo de que as respostas colocadas no palco para responder a essa pergunta, no fundo, passem todas por questões de linguagem e forma. À primeira vista não deve haver nenhum mal nisso; o cuidado a ser tomado é que, longe de emancipar o posicionamento político, o teatro desprovido de questões políticas, no sentido laico do termo, corre o risco de criar uma arte sem consciência, vazia e estéril, uma vez que despreza sua destinação humanista.

O uso ilimitado da liberdade criadora é uma realidade do teatro mineiro e talvez de várias partes do mundo. Mas isso não pode ser motivo de acomodação. O que de certa forma parece estar faltando é aceitar a visão da arte como geradora de autoconhecimento e integração social, retomar o conceito de arte coletiva em que artistas e público sejam igualmente importantes para o processo civilizatório.

Não compete a uma obra de arte dizer se ela é boa; nem se é preciosa; nem se comparar a outras expressões. A arte ou os artistas não têm de acreditar em si mesmos nem no seu trabalho. Têm de se manter abertos e diretamente conscientes dos impulsos que motivam a si mesmos e, por conseguinte, a sociedade em que vivem.

Acho que estamos no caminho certo, já temos um excelente arsenal artístico. O que o teatro precisa é manter sua própria expressão clara e direta, manter aberto o canal para perceber-se parte do mundo que está ajudando a construir.