Durante
o segundo semestre de 2012 escrevi comentários críticos de boa parte das
estreias teatrais belo-horizontinas. Tenho conversado com algumas pessoas e estas
têm me cobrado um balanço, uma opinião sobre o teatro mineiro como um todo.
Bem, minha mais importante conclusão é que Belo Horizonte faz um ótimo teatro.
Estéticas diversificadas são exploradas, formatos de criação e linguagem
ousados saem da sala de ensaio para os palcos. No aspecto técnico respira-se um
momento realmente importante. Há muitos bons atores, diretores, produtores, cenógrafos,
iluminadores, etc. Há sem dúvida um profissionalismo, mesmo que as condições
financeiras e mercadológicas não sejam as ideais, os artistas fazem peças
cuidadosas e profissionalmente honestas.
Penso
que na busca por exercer esse profissionalismo, colocando a ferramenta teatro a
serviço do teatro em si, o artista mineiro parece, em comum acordo com a
sociedade, se ausentar das problemáticas que são comuns a todos. Isso pode ser
um movimento natural; para Max Horkbelmer “quanto mais intensa é a preocupação
de um indivíduo com o poder sobre as coisas, mais as coisas o dominarão, mais
lhe faltarão os traços individuais genuínos” (cf. Eclipse da Razão). Se alguém
me perguntasse quais são as questões de muitos dos artistas de teatro de hoje,
talvez eu não soubesse responder, apoiando-me apenas nos espetáculos a que
assisti.
O
que estou tentando dizer é que os aspectos técnicos e comerciais da arte
parecem dominar o pensamento dos artistas. Talvez isso esteja acontecendo em
todas as artes, não é algo exclusivo da cidade de Belo Horizonte e sim de todo
o mundo ocidental; mas, como nesse momento estou cumprindo o papel de
provocador do teatro, escrevo agora para os artistas do teatro mineiro. Gosto
da definição de Roland Barthes, que afirma que “a crítica não é uma ‘homenagem’
à verdade do passado, ou à verdade do ‘outro’, ela é construção do inteligível
de nosso tempo”. (cf. O que é a crítica).
Então
me coloco em diálogo com os artistas para pensar um pouco sobre o cenário
teatral de hoje. Penso honestamente que, em parte, falta ao nosso teatro o
desejo de levar adiante a utopia de transformar a realidade. Percebo uma
concordância com os modelos estabelecidos por nossa sociedade no ponto de vista
do pensamento. Quais as razões?
Talvez
fosse preciso que a arte e os artistas se capacitassem intelectualmente do
ponto de vista da ousadia tanto quanto já se capacitaram técnica e
comercialmente? Como disse, felicito o teatro mineiro por sua manipulação dos
recursos técnicos para a atuação e demais elementos de encenação. Em minha
opinião nosso teatro já goza de alto nível de profissionalização, mesmo
comparado ao principal polo do teatro brasileiro que é a cidade de São Paulo, e
outras com cena teatral desenvolvida, como Porto Alegre, Curitiba e Rio de
Janeiro. Mas, como em boa parte de outras áreas da sociedade, o teatro mineiro aceitou
o modelo capitalista como forma de despolitização que no Brasil está ainda mais
associada à liberdade e emancipação política pós-ditadura militar. A maior
parte do teatro mineiro parece viver hoje em concordância com o estabelecido,
vive feliz e de certa forma alienado, deixando para o poder público pensar e resolver
as questões humanas, sociais e políticas, desde que, de algum modo, financiem sua
arte. Não se pode negar que há quem reclame por políticas públicas, mas no
fundo esses artistas estão clamando por mais dinheiro para seus próprios
projetos. É um tema importante, mas não é o único.
O
que acredito é que estilo e conteúdo são inseparáveis e, em seu amálgama, precisam
favorecer a transformação de informações em conhecimento.
DESPOLITIZAÇÃO
“O sono da razão gera monstros”
Título de um quadro do pintor espanhol Francisco Goya
Podem-se
dizer muitas coisas. Que o teatro é uma arte que nasceu do ritual. Que as artes
cênicas são um acontecimento, que têm o diferencial de retirar as pessoas de
suas casas e tê-las em sua presença e participação como testemunhas de um
acontecimento vivo, espetacular. Se pararmos por aqui já teríamos recursos de
sobra para afirmar que o teatro é essencialmente político porque conta com a
presença da plateia, do público, é uma reunião de pessoas.
Por
que então, à exceção do momento festivo que vivemos nos meses de janeiro e fevereiro,
as pessoas não vão ao teatro? Por que o teatro se tornou puro entretenimento? Sinto
que o engajamento da arte com as questões históricas que estão se construindo
hoje é a maneira mais arriscada, e a única importante, de conectar a arte ao
mundo – de torná-la viva e imprescindível. O resto são apenas acontecimentos
comuns. No geral, as peças estreadas em Belo Horizonte são acontecimentos
comuns porque não carregam, ou não vão a fundo, nas problemáticas que vão além
da linguagem. No teatro a despolitização é principalmente uma questão de não
apontar através da obra alguma crítica à realidade. O caso é que as obras que
não fazem nenhuma provocação no ponto de vista do pensamento são vazias.
No
teatro mineiro vejo obras, e não estou falando apenas de comédias, fortemente
marcadas por uma necessidade de agradar. Não acredito que a função da arte seja
agradar. Claro que ninguém quer fazer uma peça para que não seja assistida.
Brecht disse que antes de tudo o “teatro deve ser divertimento”, e esse é um
ótimo conselho. Mas se olharmos para o teatro que ele fez e que até hoje é
contundente, vamos observar que sua diversão era refletir sobre o ser humano e
seu tempo; dava ao seu teatro uma função antropológica e social cuja utilidade
era colocar em debate problemas comuns às pessoas que iriam assisti-lo.
Infelizmente
percebo que a despolitização mora na raiz da sociedade brasileira contemporânea,
é um problema social, mas, como artistas, as pessoas de teatro não podem
aceitar isso passivamente. Por exemplo, não podem fazer a sua arte para
qualquer público, para alcançar o maior número de pessoas possível.
Economicamente é uma ideia sedutora, mas politicamente é um fiasco. Se a
plateia está no cerne das artes cênicas, pensar nela é um dever dos artistas de
teatro, é preciso saber o que está dizendo e para quem. Fazendo isso, a chance
de elaborar algo importante é maior e, consequentemente, o público também será
maior. Por outro lado, é preciso dar uma opinião sem ser unilateral, levar um
assunto para debater, para que o público possa começar a elaborar respostas no
momento em que as questões se colocam no palco e depois as levar para casa ou
para uma reunião de amigos. Os espectadores devem sentir que aquilo que lhes
foi dito pelo teatro, muitas vezes de forma abstrata ou metafórica, é uma
problemática do seu mundo, algo que, como cidadão, tem o dever de responder para
si mesmo, mas principalmente responder coletivamente, porque é uma questão
coletiva.
É
importante e um ideal social que após o contato com uma obra de arte o público vá
para casa, para a escola, ou para a igreja portando perguntas. Embora o modo de
vida instaurado diga que não temos muitas questões coletivas, elas existem e
precisam ser refletidas. Devemos pensar sobre a sobrevivência do planeta; a
desigualdade social; a necessidade de afeto e, a partir dela, a criação de uma
visão coletiva da sociedade; a angústia da vida em um modelo individualista; a
queda da moral e os contrastes da evolução humana; a esfera da morte e o
sentido de existência; a formação cultural e intelectual das nossas crianças; enfim...
questões que tornam o teatro uma arte política e humanista.
TEATRO: UMA ARTE HUMANISTA
É
preciso reconhecer que o ser humano é o elemento indispensável para se fazer
teatro. A relação entre ator e alguém que o assista, que só as artes cênicas
têm em detrimento às outras artes, historicamente outorgou-lhe um apelo
humanista que prega o reconhecimento da integridade do ser humano e sua
capacidade de viver no mundo transformando-o. Historicamente o teatro se
colocou como uma arte transformadora. No mundo todo, em todas as épocas da era
moderna, é principalmente através da arte que o homem exerce sua inserção
social, temporal e espacial na sociedade.
Em
passado recente da cidade de Belo Horizonte, o papel político exercido pelo
grupo “Teatro Experimental” e o “Grupo Trans-forma” de dança dividiram a
responsabilidade com outros grupos de fora do estado em construir a noção do
ser artístico brasileiro. São as perspectivas dispostas pela arte que, embora
paradoxais, traduzem com profunda sensibilidade a dimensão complexa do homem
como ser histórico. Harold Bloom diz que Shakespeare “inventou o humano” com
suas peças de teatro. Fez isso porque ofereceu ao homem a possibilidade de
enxergar através da arte facetas de sua personalidade até então desconhecidas.
Da mesma forma, sem a arte não conheceríamos quase nada da cultura grega. Sem a
arte não disporíamos de nenhuma sugestão do modo de vida de sociedades
primitivas. É através das artes que temos contato com costumes e anseios do
homem do renascimento.
Como
uma atividade essencialmente humanista inserida na sociedade, o teatro deve
negar a superioridade da vida contemplativa sobre a vida ativa, valorizar e
reconhecer a efetividade da liberdade humana como sujeito construtor da
história em sua dimensão social.
A MÍDIA, OS EDITAIS E/OU O PÚBLICO
O
que ocorre atualmente é que os meios de comunicação de massa encontram pouca ou
nenhuma dificuldade em fazer aceitar interesses particulares como sendo de
todos os “homens sensatos”. Boa parte das estreias teatrais belo-horizontinas
não foram devidamente repercutidas pela imprensa local que prefere dar foco ao
que não é mineiro. Na televisão, que é ainda o meio mais influente, o teatro
mineiro é quase que completamente ignorado. A TV Alterosa divulga as peças que
estão em cartaz em seu teatro, mas ainda ignora o restante da programação
local. Como ignorar a cultura produzida aqui, para as pessoas daqui? Penso que
é um dever a ser cobrado por todos, público, artistas e principalmente os
governos municipal e estadual. O mesmo acontece com todas as nossas artes,
excetuando-se aquelas que de alguma maneira receberam notoriedade na impressa
fora dos limites do estado.
Então,
uma arte como o teatro que poderia ser participativa e se prestar à função de
produção do pensamento de uma cidade, uma ferramenta da cidadania, está
encerrada em inevitável ostracismo ideológico. Isso porque o teatro vai sempre
refletir as necessidades políticas da sociedade que, grosso modo, se tornaram
necessidades e aspirações individuais; sua satisfação promove os negócios e a
comunidade, tudo parecendo constituir a própria personificação da razão, mas no
fundo diminuindo o poder de mobilização em torno das questões sociais. Diante
da degradação cultural do nosso tempo, onde a principal característica talvez
seja a passividade com que assistimos o desmoronamento das entidades sociais,
estaria o teatro mineiro conivente com o desmoronamento de si mesmo?
A
participação do estado busca se ausentar das responsabilidades, está ligada ao
formato de lei de incentivo “captação” que pode ser visto como uma espécie de
manipulação totalitária, pois segundo Marcuse “o totalitarismo não é apenas a
coordenação política terrorista da sociedade, mas também uma coordenação
técnica econômica não terrorista que opera através de manipulação das
necessidades pelo capital investido.” (cf. Ideologia da Sociedade Industrial).
Sujeito à aprovação da maioria, pautado na cartilha do que é amplamente aceito,
os departamentos responsáveis dentro das empresas vão financiar projetos que
cumpram as “necessidades pelo capital investido”. Ou seja, retorno de mídia na
afirmação das similaridades, reforçando o que já é sucesso.
O
problema é que a vitalidade na arte é um resultado de articulação, energia e
diferenciação. Toda grande arte é diferenciada. Por outro lado, a consciência
de que as coisas ao nosso redor diferem entre si toca a origem dos nossos
medos. Se por um lado, como espectador, me sinto mais confortável em perceber
similaridades com o meu modo de pensar, por outro, entendo que os artistas
devem aceitar o medo das diferenças a fim de criar uma arte vital. O público
que assiste uma arte diferenciada será provocado, terá medo e vai gerar
oposição. Essa oposição gera prazer intelectual, gera reflexão e pensamento
crítico, toca em questões políticas e morais, toca em questões psicológicas
inconscientes. Nesses estágios estão a importância da arte e do teatro, é onde
ele colabora com a formação da cultura de um povo, contribuindo positivamente
no estabelecimento de uma identidade belo-horizontina.
Enquanto
briga pela aprovação nos editais e captação nas empresas, o teatro parece não
perceber que há algo de errado na relação com seu financiador mais precioso: o
público. Já ouvi alguns artistas amigos meus afirmando que se houvesse tanto
público quanto há na campanha durante o resto do ano, muitos artistas mineiros
viveriam exclusivamente da sua arte. Enquanto na campanha a plateia se dirige em
massa para os teatros, buscando diversão e entretenimento, durante todo o ano,
apesar de um cenário profissional, diversificado e bem feito, as plateias estão
vazias. Uma das consequências é que poucos produtores se arriscam em uma
temporada um pouco mais longa. Esse ano muitas estreias tiveram o número
restrito entre uma e quatro apresentações. Por quê?
TEATRO TRANSFORMADOR
Como
os artistas de teatro em Belo Horizonte responderiam a pergunta retórica: como
a arte pode mudar o mundo hoje?
Falando
de um passado recente e sua participação no teatro de Belo Horizonte na década
de 70, Pedro Paulo Cava disse o seguinte em entrevista à Glória Reis:
“Fazíamos
uma arte engajada. Tenho saudades desta época, desta Belo Horizonte pequena,
mas instigante, em que os artistas tinham furor de aprender, de discutir, de
mobilizar-se. Numa mesma mesa de bar reunia-se um universo eclético, variadíssimo,
de pessoas discutindo a cidade, a vida, os rumos, querendo transformar o
Brasil, não só através da arte, mas de sua ação nas várias profissões. O teatro
estava em função daquilo que acredito ser o seu papel: agente transformador de
uma realidade social”. (Cf. Cidade e Palco).
Hoje
tenho medo de que as respostas colocadas no palco para responder a essa
pergunta, no fundo, passem todas por questões de linguagem e forma. À primeira
vista não deve haver nenhum mal nisso; o cuidado a ser tomado é que, longe de
emancipar o posicionamento político, o teatro desprovido de questões políticas,
no sentido laico do termo, corre o risco de criar uma arte sem consciência,
vazia e estéril, uma vez que despreza sua destinação humanista.
O
uso ilimitado da liberdade criadora é uma realidade do teatro mineiro e talvez de
várias partes do mundo. Mas isso não pode ser motivo de acomodação. O que de
certa forma parece estar faltando é aceitar a visão da arte como geradora de
autoconhecimento e integração social, retomar o conceito de arte coletiva em
que artistas e público sejam igualmente importantes para o processo
civilizatório.
Não
compete a uma obra de arte dizer se ela é boa; nem se é preciosa; nem se
comparar a outras expressões. A arte ou os artistas não têm de acreditar em si
mesmos nem no seu trabalho. Têm de se manter abertos e diretamente conscientes
dos impulsos que motivam a si mesmos e, por conseguinte, a sociedade em que
vivem.
Acho
que estamos no caminho certo, já temos um excelente arsenal artístico. O que o
teatro precisa é manter sua própria expressão clara e direta, manter aberto o
canal para perceber-se parte do mundo que está ajudando a construir.