segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

argonautas de um mundo só

Tecnologia e formalismo em reflexão sobre o mundo midiático

04 a 13 de Janeiro - Sala Multiuso Sesc Palladium
6 a 16 de Dezembro - Spetáculo Casa de Artes

No vídeo projetado na porta de entrada do teatro o grupo de atores nos sugere aquilo que pode ser o mote do espetáculo: é possível estabelecer relações humanas verdadeiras através do distanciamento de uma mediação técnica? Intrínseca, essa pergunta perpassa o espetáculo através de quatro personagens que vão figurar em mundos particulares. Apesar de dividirem o mesmo palco, estão em espaços cênicos diferentes e não vão se olhar nos olhos; vão buscar se relacionar através de celulares, computadores, câmeras e projeções ao vivo.

Apesar de certo formalismo na concepção das cenas a proposta é instigante. Em dramaturgia não linear pautada nas possíveis relações inerentes dos dispositivos tecnológicos, o espetáculo alcança o público pela empatia dos personagens que, perdidos e solitários, por vezes acabam se tornando risíveis. Como acontece, por exemplo, na divertida cena em que Alexandre Vasconcelos se atrapalha enquanto prepara uma simples vitamina de banana, seguindo à risca um livro de receitas. No geral os atores imersos na proposta vão fundo na busca de revelar a massificação e alienação dos personagens.

Priscilla D’Agostini chama atenção pela entrega, protagonizando cenas difíceis como o bom momento em que dubla uma projeção de si mesma, revelando nova faceta da personagem. Bem disposto Glauco Mattos sobressai em movimentos precisos, aplicando desenvoltura corpórea na execução das ações. No bom elenco o destaque é Fafá Fernandes que tem maior presença e domínio de texto, dando organicidade à encenação midiática. Atriz versátil e sem preconceitos, ganha na experiência diária porque sabe transitar em produções dos mais variados gêneros, construindo e se formando nos palcos, uma atitude que serve de exemplo a ser seguido por muitos de seus colegas de classe. 

Na visível experimentação que o espetáculo submerge, fica a vontade de ver melhor explorado alguns recursos interessantes, como a projeção no corpo dos atores, cujas fotos do programa da peça sugerem ter alcançado caminhos ainda mais belos e curiosos. As soluções para mudança de cena que propõe movimentação dos atores, luz baixa com efeitos de gobo (que vem acompanhando as últimas criações de Felipe Cosse) e a cenografia sendo arrastada de um lado para o outro apontam o desejo da direção de Júlio Viana em instaurar uma atmosfera contemporânea. Infelizmente o recurso não se sustenta e acaba fazendo coro ao formalismo já mencionando que nesse momento já se aproxima de ficar um pouco chato e repetitivo.

O título da peça remete aos tripulantes da nau Argo de Jasão, aqueles que viveram muitas aventuras e conheceram muitos mundos em busca do carneiro de ouro. Procurando alguma significação mais elaborada, penso que os personagens de “Argonautas de Um Mundo Só” navegam pela world wide web e, ainda que compartilhem da promessa de grandes aventuras virtualizadas, mantêm-se presos ao seu mundo físico.

A parafernália em cena e a concepção de cenas esteticamente midiatizadas podem chegar ao espectador com certo distanciamento; um teatro muito cerebral a princípio, mas que se desenvolve, e no terço final do espetáculo consegue virar a chave e dar sua mensagem com soluções mais simples diante da referência apresentada no começo.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

eu não sou cachorro não

Musical brega traz a marca do diretor Fernando Bustamante em boa produção

02 de Março - Grande Teatro SESC Palladium
02 a 25 de Novembro – Teatro Dom Silvério

Empreendedorismo é uma palavra que pode ser associada ao diretor Fernando Bustamante. Nos últimos anos vem se dedicando à profissionalização do teatro musical em Belo Horizonte, sempre trazendo aos palcos boas produções ligadas ao gênero. Alguns dos espetáculos que montou foram reconhecidos e premiados, além de conquistar sem reservas grande parte do público de teatro infantil. Dentre eles estão “A Pequena Sereia”, em versão estendida e pocket, “Lampiãozinho e Maria Bonitinha” e “A Arca de Vinícius”.

Os primeiros minutos de “Eu não sou cachorro não” dão vestígios de que tal empreendedorismo nos levará, mais uma vez, para ótimos caminhos. Com recursos próprios o diretor realiza uma superprodução, aplicando visível esforço em um cenário grande, correto figurino, iluminação sofisticada e, somando atores e bailarinos, contabiliza mais de quinze pessoas em cena. Entre eles Tania Alves, uma atriz de projeção nacional, que distante dos palcos mineiros há muitos anos reaparece cantando e atuando com um personagem denominado “o furacão de Buenos Aires”.

A peça aposta no bom argumento de Leo Mendonza que se propõe a costurar a dramaturgia em cima de músicas bregas de compositores brasileiros, como Waldick Soriano, Agnaldo Timóteo e Wando. Pena que o texto não acompanha o argumento e a trama é simplória, assumindo a clara função de apenas servir de escada para as canções, onde se percebe a preocupação da equipe em priorizar a musicalidade em detrimento do teatro.

E é esse o maior deslize do espetáculo. O que não é bom e desvaloriza a montagem é o teatro em si. Focado em fazer os atores cantar bem, o espetáculo peca na construção dos personagens, na ação e reação, naquilo que deve ser o elemento chave de qualquer teatro, seja ele musical ou não: o jogo. Nessa toada o jovem protagonista canta muito bem, mas como intérprete não está à altura da produção e é com certeza um dos mais fracos em cena. Tania Alves tem bons momentos, mas parece perder força na escolha da personagem argentina que não alcança o tom e potência do “furacão” sugerido pelo texto. Seu partner, Leo Mendonza, parece colar uma máscara enrugada no rosto para expressar os mais variados sentimentos. Com a mesma expressão piedosa busca dizer tanto que ama quanto que sofre ou lamenta a perda de sua amada.

O destaque do elenco principal é a atriz Jai Baptista, que consegue cantar bem e ainda se fazer crer, conquistando a simpatia do público que tem diante de si um elenco tão irregular. No geral as coadjuvantes femininas estão mais seguras e à vontade que os masculinos, também marcados por más interpretações. Tamanha a dificuldade em atuação que muitas vezes os bailarinos e bailarinas que participam sem fala de determinadas cenas manipulam maior poder de convencimento que os ditos atores.

Ainda assim, com bom desenho de cena associado à concepção coreográfica e forte encenação, o espetáculo atinge a catarse através das canções bregas que permeiam o imaginário da plateia. Um elemento da ficha técnica que merece ser citado é a iluminação que sabe aproveitar o cenário para valorizar planos e construir atmosferas.

Fernando Bustamante parece ter percebido que os atores mineiros não têm a devida formação para o estilo musical e, para solucionar este problema, foi pioneiro em criar uma escola para tal fim, o CAMA – Centro de Atividades Musicais e Artísticas. A iniciativa que deve ser reconhecida e reverenciada poderia servir como um ponto de equilíbrio para as produções do diretor, formando mais atores que saibam cantar do que cantores que não sabem atuar. 

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

delírio & vertigem

Oficinão comemora 15 anos com boa montagem

 17 de Janeiro a 03 de Fevereiro - Galpão Cine Horto
23 de Novembro a 9 de Dezembro - Galpão Cine Horto

O que faz de Deliro & Vertigem uma das melhores peças do teatro mineiro no ano de 2012 não tem a ver com o bom texto, a ótima direção, uma produção eficiente e a roupagem moderna que o resultado final atinge. Sim, a peça é muito bem produzida, tem todas essas qualidades, mas o que tem de melhor não é nada disso, nada teria força não fosse a entrega e adesão dos atores à proposta da direção.

Trata-se daquilo que vez por outra alguém afirma categoricamente, todos no geral sabem, mas é tão difícil presenciar: o “encontro”. Muitas vezes bons atores trabalham com bons diretores em montagens com equipe técnica consagrada e, ainda assim, o resultado não é bom. O “encontro” não acontece sempre porque, por via de regra, não depende daquilo que o artista manipula, é resultado de circunstâncias que fogem de um planejamento objetivo.

Dito isto, só podemos falar dos outros elementos, as escolhas objetivas do processo de criação. Para começar, podemos dizer que a encenação é bonita e bem acabada. Ao entrar no teatro nos deparamos com um cenário cuja estética dialoga muito com outros espetáculos dirigidos por Rita Clemente. O cenário simples que de imediato traz a sensação de limpeza e bom gosto, associado à iluminação sofisticada, que por vezes se integra ao cenário para empregar bem os efeitos que propõe, servem para criar um território atemporal que não determina nenhuma localização, onde as histórias variadas da dramaturgia possam encaixar-se sem causar estranhamento.

O espetáculo começa e é muito difícil não grudar os olhos na figura apresentada por Débora Borges. Atriz espirituosa, jovem e carismática, cumpre a difícil tarefa de tornar orgânico o figurino que porta, tão belo que encherá os olhos de muitos amantes das artes e da moda. A figura que compõe, apresentada nos primeiros instantes, perdura na cabeça do espectador no restante da peça. A curta história que protagoniza poderia estar na coletânea de contos “A vida como ela é”, de Nelson Rodrigues, mas é um texto inédito de Jô Bilac, autor contemporâneo que com a Cia. Teatro Independente do Rio de Janeiro, nos textos dos espetáculos “Cachorro” e “Rebu”, já flertava com a atmosfera do absurdo e fantástico, reascendendo temas que poderiam ser de Nelson.

A exemplo da primeira, as outras histórias, também escritas por Jô Bilac, se aproximam do universo rodrigueano e apresentam situações extremas quase sempre com final trágico. Uma a uma elas vão sendo contaminadas por um simples passar, ou um mero ficar em cena, de personagens que não fazem parte da estória que assistimos agora, mas que ainda serão apresentados na próxima ou estiveram na última. Mérito da direção que, como um maestro, manipula a cena, orquestrando cada nota emitida pelo ator que entra e sai no tempo certo, variando os tons e semitons, com uma simplicidade que só se consegue com longos ensaios. São muitas histórias, oito só na primeira parte denominada “Delírio”, e esse jogo do contaminar vai ganhando cada vez mais força para dar unidade ao espetáculo.

No geral o elenco jovem se mostra seguro e bem dirigido durante todas as cenas. Talvez algum deslize nas nuances do texto, compreensível pela ausência de bagagem e pouca idade. Dentre os muitos atores destacam-se, além de Débora Borges já citada, Márcio Monteiro que tem bom domínio de texto e constrói personagens convincentes, transitando bem entre tragédia e comédia, e Raquel Castro que se aproveita do veio cômico que lhe é peculiar e da maior experiência que tem para protagonizar as melhores cenas do espetáculo.

Apesar da força e potência das estórias, são problemas da peça as resoluções muito rápidas com que acontecem os conflitos colocados. Em alguns casos não dá tempo de nos envolvermos com o enredo e a imediata resolução acaba tornando superficial nossa absorção. Outro ponto é que muitas vezes os personagens apresentados são tão intrigantes que gostaríamos de vê-los desenvolvidos, saber mais sobre eles e suas questões.

O que parece ser sempre uma questão dos espetáculos resultantes de um curso de formação que nasceu com a ideia de reciclagem de atores profissionais, como é o caso do Oficinão do Galpão Cine Horto, é difícil diante de um elenco numeroso encontrar textos que ofereçam oportunidades instigantes a todos os atores. Neste caso a escolha das cenas resolve essa questão em detrimento dos prejuízos já apontados. Outra escolha que parece corresponder a um processo com grande número de atores é a repetição de algumas cenas, dando-lhes nova leitura. O recurso se mostra frágil e desnecessário se comparado a outras escolhas tão acertadas da produção.

Ainda assim, o Oficinão comemora 15 anos com boa montagem que figura entre as melhores estreias do ano e, acredito, deve ter o status dos espetáculos que só podemos presenciar de vez em quando, quando o “encontro” acontece.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

na comédia de edgar, alan põe o bico

Força de interpretação é diferencial da Cia P’Atuá

1 a 4 de Novembro - Galpão Cine Horto

Em “Na comédia de Edgar, Alan Põe o bico” da Cia P’Atuá podemos identificar duas peças em uma. Uma delas é inspirada no conto “O Corvo” de Edgar Alan Poe onde texto, encenação e interpretação, mais elaborados, concentram a maior força de produção e duração cênica; a outra um pocket show de extrema simplicidade onde os personagens dos repentistas Zé Prenúncio e Mal Agouro fazem paródia de três músicas da dupla caipira Alvarenga e Ranchinho para apresentar ao público o Prólogo, Entreato e Epílogo, fazendo as vezes do coro da tragédia que está sendo contada.

Tamanho o entrosamento e despojo da dupla que, curiosamente e apesar da simplicidade de produção que passa pelo figurino, luz e objetos, as intervenções dos repentistas são melhores que a peça em si, e as cenas que protagonizam mais envolventes que o restante da peça. São nessas intervenções que Glicério do Rosário e Cláudio Márcio podem, de cara limpa, fazer uso maior do carisma e veio cômico que têm, compartilhando com a plateia o prazer de estar em cena. Glicério é melhor e mais completo; além de cantar e tocar bem, manipula o ritmo como senhor da cena. Cláudio Márcio ganha na atitude clownesca do augusto que se diverte com as próprias falhas. Cecília Meireles disse certa vez que a “simplicidade só se consegue através de muito trabalho”. Esta é a sensação que estes dois repentistas trazem se pensarmos neles de forma distanciada. Compor as paródias, gravá-las em estúdio, vender CD na porta e esbanjar entrosamento cênico não é tarefa simples e sim resultado de muito trabalho.

Na interface cênica criada a partir do conto “O Corvo”, o texto é mais elaborado e a encenação mais inteira, Cláudio Márcio, no papel do corvo Alan, é mais espirituoso e alcança o público pela comicidade e irreverência do personagem que constrói.  Glicério mantém boa energia, mas se ressente da dificuldade trágica do protagonista. Trata-se do escritor Edgar Alan Poe, ou apenas Edgar, como sugere a adaptação, que diante da falta de dinheiro tem de escrever uma comédia em vez da sua especialidade que é a tragédia. A trama se desenvolve de forma leve, por vezes engraçada, com o corvo ajudando Edgar a tecer o texto de sua primeira comédia e, como no conto, terminar em final trágico.

A encenação é bem feita e traz um figurino fantástico com traços impressionistas, destacando-se a elegância animalesca do corvo Alan. O cenário é mais realista, mas a utilização dada pelos atores o torna inventivo. A iluminação de Felipe Cosse e Juliano Coelho começa cheia de desenhos e efeitos, dando a impressão de que terá a mesma inspiração alcançada em estreia recente de “Ode Marítima”, mas no decorrer da peça dá licença para os atores serem os protagonistas, afinal a companhia é p’atuá.

É pena que a peça perca naquilo que tem de melhor. A força e comicidade dos repentistas elevam a energia do teatro a um patamar que a peça em si não consegue alcançar. Além disso, as soluções musicais utilizadas para que os atores possam trocar de figurino, passando de Edgar e Alan para Zé Prenúncio e Mal Agouro, não têm força dramática para preencher a cena, deixando claro para a plateia que se trata de uma mera transição. Outro problema é que essas passagens evidenciam a dificuldade técnica com os instrumentos que, por vezes, são dublados e o ator apenas finge estar tocando.

Ainda assim, com dramaturgia trabalhosa, direção coerente e indiscutível força de interpretação “Na comédia de Edgar, Alan Põe o bico” é mais uma boa estreia do teatro mineiro, cuja honestidade e compromisso com o trabalho de ator valem o ingresso.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

átridas – o homem morto na banheira

Espetáculo recria tragédia de Agamêmnon com encenação contemporânea

16 a 24 de Fevereiro - Sala Multiuso SESC Palladium
26 de Outubro a 04 de Novembro - Sala Multiuso Sesc Palladium

Ao ler no título da peça o nome da família “Átridas”, algum bom conhecedor do teatro grego pode esperar encontrar em cena personagens e acontecimentos anteriores ao retorno de Agamêmnon à Grécia após vencer a guerra de Troia. Como, por exemplo, a maldição de Mírtilo a Pêlops antes deste se tornar o rei do Peloponeso; ou ainda da disputa de Atreu e Tiestes, filhos de Pêlops, pelo trono de Micenas, episódio onde Tiestes seduz a mulher de Atreu e rouba-lhe o carneiro de lã de ouro que, de acordo com os deuses, lhe garantiria o trono. Mas nada disso acontece. Em “Átridas – O Homem Morto na Banheira” Atreu e Tiestes estão apenas no diálogo de seus respectivos filhos Agamêmnon e Egisto, e só.

Ansiedades e desejos pessoais à parte, a escolha da produção é trazer à cena uma boa adaptação inspirada no texto “Agamemnone”, do italiano Vittório Alfieri, focando a estória no retorno do Rei Agamêmnon, talvez o nome mais famoso da linhagem dos Átridas. Depois de liderar a vitória da Grécia sobre Troia, Agamêmnon retorna ao seu palácio em Argos para ser vítima de traição e morte pelas mãos de sua esposa Clitemnestra e seu arquirrival Egisto, filho de Tiestes, que aproveitou a ausência do Rei para tornar-se amante de sua esposa. A escolha parece acertada à medida que o espetáculo consegue desenvolver melhor a trama entre o retorno de Agamêmnon e o momento de sua morte, diferenciando-se do texto “Agamêmnon” de Ésquilo, e tornando a peça mais acessível ao publico.

Mas o que “Átridas – O Homem Morto na Banheira” tem de melhor é a encenação. Esta parece ter correspondência com a pesquisa realizada em outra montagem do Trupe de Teatro e Pesquisa intitulada “O Poema do Concreto Armado”. Na ocasião, a exemplo da montagem atual, o grupo também se valia da utilização de televisores e da ressignificação de um espaço alternativo multiuso. Desta vez, o cenário, cujo destaque é uma belíssima banheira que permeia a peça como o local onde Agamêmnon foi e será morto, abriga dois televisores. As imagens utilizadas nos vídeos são referências, ora concretas ora abstratas, ao que se passa na cena. Podemos identificar, por exemplo, imagens do filme clássico “Iphigênia”, quando a mesma é citada pela rainha, ou ainda da cantora e compositora Amy Winehouse quando Egisto, encarnando o fantasma de seu pai, canta a música “Back to Black”, da falecida popstar, cuja letra tem clara correspondência ao retorno de Tiestes para a escuridão e o fato de que a maldição de Mírtilo não morrerá, ou morrerá cem vezes e retornará.

Fazendo jus ao nome do grupo, a pesquisa é um elemento onipresente. Trabalhando de forma semiótica, a peça manipula tantos signos que é até difícil acompanhar. Na adaptação proposta ao texto é possível identificar, entre outras inserções, o poema dramático “Agamêmnon”, de Sêneca, o poema em prosa “Clitemnestra ou o crime”, de Marguerite Yourcenar, ou ainda trechos de “Hamlet Máquina”, do dramaturgo alemão contemporâneo Heiner Müller, inteligentemente transferido para a boca de Electra. Nas imagens, como havia citado, coabitam ícones clássicos e contemporâneos. Na trilha sonora músicas de vertente techno e eletro em diálogo com canções cantadas pelos atores, reeditando, por exemplo, Lupicínio Rodrigues e outros temas em francês, inglês e indiano. Tal empreitada já não é tão bem executada já que é perceptível que alguns atores estão mais bem preparados para o canto do que outros, mas que, enquanto escolha, vale pela ousadia e profusão de signos compartilhados com as imagens.

Curiosamente parece ser uma escolha da direção orientar a interpretação dos atores, colando-lhes uma voz impostada, buscando algo que talvez se aproxime da imagem construída pelo mundo moderno da maneira como se devia fazer uma tragédia grega. A proposta incomoda inicialmente, mas, à medida que a entendemos e assimilamos, ela vai perdendo o estranhamento distanciado que gerava nos primeiros minutos e podemos até experienciar a catarse de uma história trágica. Entre os atores o destaque é Jader Corrêa que se mostra à vontade como o vilão Egisto que por vezes encarna o fantasma de seu pai. A transição entre esses dois personagens é o ponto alto de interpretação da peça. Yuri Simon e Pauline Braga também dão conta dos personagens centrais de Agamêmnon e Clitemnestra. Quem parece um tanto exagerada é Alice Corrêa que apoia sua construção de Electra em tensões faciais e vocais pouco críveis.

O figurino é mais um ponto onde a escolha é radical, mas que não atinge a mesma força dos outros elementos. Trata-se de uma clara apropriação oriental, de quimonos e calças largas, que buscam diálogo com o bastão de Aikidô utilizado para as cenas de luta. Embora funcione pontualmente principalmente aos homens, no todo parece perder em coerência, evocando pouco o brio de nobreza e feminilidade da rainha e sua filha.

 “Átridas – o homem morto na banheira” tem o mérito de realizar apropriada intersecção entre o clássico e o contemporâneo com a competência de um grupo que completa 20 anos. Distinguindo-se pelo comprometimento com a pesquisa conceitual e estética, o grupo lança mão de recursos audiovisuais para apresentar uma tragédia com nova roupagem, sofisticando e enriquecendo o mito sem para isso torná-lo hermético.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

os bem-intencionados

Lume Teatro comemora 27 anos com a força de um grupo maduro ainda disposto ao risco 

27 e 28 de Julho - União Fraterna Bailes – SP
01 de Agosto a 30 de Setembro – Sesc Pompéia

Depois de anos desenvolvendo projetos menores, com no máximo quatro atores, é um prazer rever o Lume reunindo todo o elenco em cena. Carlos Simioni, Jesser de Souza, Ricardo Puccetti, Renato Ferracini, Ana Cristina Colla, Naomi Silman e Raquel Scotti Hirson trazem para o palco de “Os Bem-intencionados” a confluência de suas pesquisas de 12 anos sobre o bufão  coerentemente organizadas por dramaturgia e direção da mineira Grace Passô, do grupo “Espanca!”, de Belo Horizonte.

A constatação é que, assim como as figuras desenhados no palco, o Lume é um grupo bem intencionado, atores de meia-idade, mas com a disposição criativa de jovens atores. Uma entrega pessoal incrível. Conscientes de que aquilo que estão fazendo está próximo ao ridículo assumem o risco, e é essa escolha que torna o espetáculo tão bom. De acordo com o programa da peça a construção dos personagens teve início em 2002. Trata-se de artistas fracassados que sonham em ser cantores, se encontram em um bar e acabam se tornando amigos, compartilhando sonhos e a crueza do cotidiano. Ainda segundo o programa, a pesquisa passou por várias etapas, foi deixada de lado e retomada várias vezes, e só encontrou meios de se realizar agora, dez anos depois. Que bom!

A trilha sonora ao vivo, a boa ambientação cenográfica, que utiliza do espaço da União Fraterna Bailes (que em 2007 abrigou o filme “Chega de Saudade” de Laís Bodansky) como espaço cênico,  somada a proposta de disposição da plateia como cliente do bar, trazem para o espectador um senso de participação. Identificar esse senso de participação, olhando para as outras pessoas da plateia completamente imersas no acontecimento vivo que experimentam juntas na frente de todos, é um alento para quem acredita no teatro.

Um tom de autoajuda, mas de bom gosto, que acompanha a carreira da diretora e dramaturga Grace Passô é materializado mais uma vez com frases de efeito repetida diversas vezes: “Hei, Boy, você é o que você quer ser!”. O tema é explorado até o limite e, em associação às cenas fortes e à música cantada ao vivo pelos atores, é capaz de emocionar até mesmo o público mais frio.

Entre os atores os destaques ficam para Jesser de Souza e Ricardo Puccetti que, ajudados pela dramaturgia, apresentam as figuras exóticas com dramas mais coerentes e bem amarrados. Carlos Simeone é uma espécie de coadjuvante de luxo; como um mestre de cerimônias, dono do bar, assiste à boa parte das cenas com interferências pontuais, mas incisivas. A protagonista das melhores cenas é Ana Cristina Colla; fica para ela os momentos de maior risco, manipulando rosas e facas em cenas fortes que mobilizam o público. Em outro bom momento, que talvez seja o ápice da peça, Ana Cristina entra em um transe consciente e contagiante que aos poucos vai envolvendo os outros atores e a plateia em um desnudamento sincero e impactante. 

A intensidade da cena retrata bem a entrega desse grupo maduro e contundente. O Lume Teatro mostra em “Os Bem-intencionados“ que é ainda propenso ao risco, capaz de aplicar a bagagem técnica de anos de pesquisa a um despojamento jovem e bem-intencionado.

domingo, 4 de novembro de 2012

vulgaridades sublimes

Machado de Assis revisitado em boa forma

05 a 27 de Fevereiro - Teatro Júlio Mackenzie SESC Palladium
26 a 28 de Outubro - Teatro Sesi Holcim
03 e 04 de Novembro - Teatro João Ceschiatti

Com o mérito de buscar adaptar parte da obra de Machado de Assis para o teatro, “Vulgaridades Sublimes” da Insensata Cia de Teatro, se relaciona com os contos “Pai Contra Mãe” e “A Cartomante” para criar imagens através de um bom desenho de cena. Combinando a fisicalidade dos atores, a transparência do tecido que compõe o cenário, as cores do belo figurino e a coerente iluminação, a direção de Marcelo do Valle faz suaves composições imagéticas, “pintando” as cenas como quadros cênicos.

Os contos escolhidos parecem ter a força necessária para uma encenação, mas para tanto precisam ser realmente adaptados. É uma característica de grande parte dos contos de Machado de Assis acabar em suspensão. São muito bem preparados em sua apresentação, situando personagens e atmosfera, mas quando o problema é colocado não existe grande desenvolvimento, a estória se resolve e o conto acaba ali. Essa é uma característica difícil de realizar no teatro. Em “Vulgaridades Sublimes” sentimos falta de desenvolvimento. Quando o problema se instaura, enquanto público, não temos tempo de compartilha-lo antes de vê-lo solucionado. A sensação é que um único conto daria uma peça inteira e que da maneira com que são mostrados ficam superficiais.

Dentro dessa perspectiva, a construção dos personagens, que no geral é bem feita, peca a medida que carrega muito nas emoções. Uma tentativa de acompanhar os acontecimentos fortes e próximos uns dos outros. A direção permite que os jovens atores se percam em felicidade e tristeza demais. Muito grito, muito choro, que ficam ainda maiores de acordo com a característica intimista e pequeno tamanho do teatro escolhido para a apresentação. Assim o destaque entre os atores fica para as coadjuvantes Jú Abreu e Dani Guimarães que conseguem ser entendidas sem lançar mão de grandes exageros, tornando a cena mais crível.

Dentre os elementos de encenação chama a atenção o cenário, composto por tecidos translúcidos esticados verticalmente. Simples, bem utilizado e bastante funcional é capaz de esconder e revelar utilizando apenas um refletor. Colabora para a atmosfera de traição que dissemina intenções veladas, além de criar planos físicos utilizados, por exemplo, para a caçada da escrava fujona.

Por fim, a peça é uma boa estreia da Insensata Cia de Teatro que acerta na escolha do autor e na composição cênica, se perde em adaptação e exageros de interpretação, mas traz a cena uma produção honesta que associa trabalho e entrega pessoal, indispensáveis ao fazer teatral.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

adultérios e outras pequenas traições

Incursão da Cia da Farsa em comédia mais escrachada é bem-vinda

16 a 19 de Agosto - SESC Palladium
9 a 25 de Novembro - Teatro Assembléia

Piada sobre sexo e homossexualidade é receita fácil da comédia mineira. Ano a ano os mais altos índices de público se repetem para produções do gênero. Com trajetória diferente até hoje, a Cia da Farsa de Teatro se relacionou de forma bem-sucedida com a comédia de costumes. Fazendo a sua leitura dos textos clássicos de Ariano Suassuna, “A farsa da boa preguiça”, que deu origem ao nome do grupo, e “Auto da compadecida”, obteve seus maiores êxitos.

Desta vez o grupo se propôs à montagem do texto “Adultérios e outras pequenas traições”, do mineiro Sérgio Abritta, que também assina a direção. As escolhas se afastam da comédia de costumes para lançar mão da tal receita – sexo e homossexualidade; e o resultado é uma peça divertida que cumpre a função de fazer rir, com o diferencial de que os atores se apoiam em tipos contemporâneos que poderiam até figurar em uma montagem farsesca, se aproveitando da bagagem do grupo.

O texto é formado por quadros fragmentados para intercalar as estórias de adultérios e traições. Um recurso proposto quebra a quarta parede e leva os atores a falar diretamente com a plateia. Fazem-se, às vezes, de dicionário e dão significado a palavras relacionadas como fornicação e adultério. A ideia é dar amarração ao texto, mas pelo alto preço de perder a força do jogo cênico alcançado pelas histórias contadas dramaticamente.

Entre os elementos da encenação o destaque fica para o figurino que lança mão de grande produção para compor um visual de época, talvez situado nos anos 1920, e seus característicos vestidos de bolinha. O senão é que por vezes a cena coloca no palco tecidos com muito brilho que, somados à grande incidência de luz, se aproximam dos limites de certo mau gosto. Outro fator que causa estranhamento é que a iluminação e o cenário não acompanham o figurino na busca por localizar a encenação na referida época. 

Curiosamente o ponto alto da peça está no prólogo onde a direção consegue dar uma rasteira no público, fazendo uso de uma atuação não-farsesca e tipológica. No geral Abritta se mostra melhor dramaturgo que diretor, à medida que não consegue que os atores pincem as nuances do texto que escreveu. Como infelizmente é recorrente desse tipo de produção, falta cuidado e trabalho de ator para fazer rir sem precisar ser exagerado. Cena curiosa que pode até causar certo desconforto no público acontece quando um personagem está de quatro, com uma roupa sadomasoquista de sexshop, e implora a amante para lhe introduzir um enorme vibrador, enquanto ela nega, porque quer que ele atenda uma ligação de sua mulher. A situação engraçada que poderia ser hilariante perde quando o ator faz “joguinho” de “ah, por favor” e não grita, não exige, não se mostra homem, o que tornaria o personagem mais humano e crível. 

Assim, apesar da bagagem farsesca e bom aproveitamento dos atores, a sensação é a de que poderiam estar mais a vontade, se esbaldando da temática, brincando mais com as palavras e situações sexualizadas.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

dois sóis: lugar algum

Remanescente do Grupo Intervalo (do falecido Ítalo Mudado) a Cia do Silêncio já nasce madura
14 de Fevereiro a 01 de Março - Teatro Júlio Mackenzie SESC Palladium
28 de Setembro a 07 de Outubro - Teatro Sesi-Holcim
12 a 21 de Outubro - Teatro Júlio Makenzie

Ao longo de mais de 25 anos o Grupo Intervalo, comandado por Ítalo Mudado, realizou cerca de 40 peças das quais, boa parte delas, com a participação, entre muitos outros atores, de Marcel Luiz, Marco Túlio Zerlotini e Pauline Braga. Com a morte do mestre os atores se dispuseram a dar continuidade ao trabalho, mas criando um novo grupo, a Cia do Silêncio.

A primeira incursão da nova trupe sem Ítalo é “Dois Sóis: Lugar Algum”, onde os atores, além de atuar, desenvolvem quase todas as outras funções necessárias para se realizar uma peça: texto, direção, iluminação, cenário e figurino. O destaque é o bom texto escrito por Marco Túlio Zerlotini, cuja temática, enraizada no choque de valores com final surpreendente, parece corresponder com o já clássico Agreste, do badalado Newton Moreno.  O triângulo amoroso vivido entre dois irmãos e uma mulher madura tem força dramática para capturar a atenção do público. Um dos recursos bem empregado são as elipses temporais que a estrutura textual sugere como na edição de um filme, localizando a passagem do tempo através do cabeçalho de uma claquete cinematográfica dita pelos atores: “cena 4, tomada 1”, por exemplo.

A integração do grupo é perceptível de tal forma que o cenário de bambu recortado, realizado por Luiz, abriga parte da iluminação, feita por Zerlotini. Juntos, cenário e iluminação, compõem uma encenação coerente com o texto ambientado na zona rural. As garrafas de cachaça, que poderiam ser de leite, são ainda mais funcionais à medida que assumem novos significados durante a apresentação. De acordo com sua utilização sugerem ação física aos atores, deixando a impressão de que poderiam ser até mais exploradas.

A direção de Marcel Luiz, que também divide a cena com Marco Túlio e Pauline, peca no ritmo e manipulação da energia. Permitindo que os atores circunscrevam um registro vocal muito próximo, situando pausas e respiração com a mesma pulsação, acaba por “chapar” as interpretações. A energia física individual de cada ator, que busca apoio no imaginário de figuras interioranas, alcança também quase o mesmo peso, onde poderiam variar entre força e suavidade; acaba por igualar-se em uma tensão contida prestes a explodir e, quando explode, também parece não atingir o clímax surpreendente que o texto sugere tão bem.

Com “Dois Sóis: Lugar Algum” a Cia. do Silêncio faz sua estreia, trazendo à cena a rica bagagem do Grupo Intervalo. Uma bela homenagem, à altura de Ítalo Mudado, o homem de teatro, com 65 anos de carreira, cujo trabalho e pensamento são um legado – direto ou indireto – a todos aqueles que hoje fazem teatro em Belo Horizonte.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

coisas invisíveis

Remontagem do texto de Gustavo Naves Franco por Anderson Aníbal tem atores convidados e retoma minimalismo sem trazer novidades


5 a 14 de Outubro - Teatro João Ceschiatti


Comemorando 10 anos de existência, a Cia Clara de Teatro remonta um de seus espetáculos de maior êxito e importância. “Coisas Invisíveis”, com direção de Anderson Aníbal, parece ter dado origem a um tipo de teatro poético e minimalista que até hoje influencia vários grupos na capital mineira, entre eles, o reconhecido Espanca!, cujos atores, Grace Passô, Marcelo Castro e Gustavo Bones, estiveram na companhia e ajudaram a construir essa forma de se fazer teatro que vai do texto emotivo, voltado para o eu, às interpretações contidas.

Passado de lado, a remontagem de Coisas Invisíveis com os atores convidados Camile Gracian, Carol Castro, Felipe Ávlis e Leonardo Fernandes ainda alcança o público pelos mesmos motivos: é poético, bonito e minimalista. O texto fragmentado de Gustavo Naves Franco é bem amarrado e, em tom jovial – um teatro feito por jovens para jovens, toca em questões comuns ao ser humano, como a força das palavras não ditas nas relações amorosas e a dificuldade de se lidar com a perda de pessoas queridas.

Com olhar distanciado, a sensação que temos é a de que a peça parece feita para comover. As atuações visivelmente ditadas pela direção carregam um desejo claro de carisma e empatia com o público. Os atores sustentam um sorriso e brilho nos olhos durante todo o tempo. A escolha da trilha sonora é bonita e melancólica, mas falta atrito, tornando-se simplória à medida que alinha texto e emoções sugeridas com a letra escolhida para fazer jus ao que acontece em cena.

A encenação é simples: um tapete branco que delimita a cena e pode fazer referência ao Carpet Theatre de Peter Brook que no  início dos  anos  1970 realizou  uma  viagem à África,  apresentando  espetáculos  que tinham como único recurso um tapete que delimitava o espaço cênico. Além do tapete “Coisas Invisíveis” usa pequenos objetos cênicos e uma iluminação igualmente simples que lança mão de muito equipamento para criar sutileza. Nessa lógica a geral pode ter 17 refletores para não fazer caber uma única sombra mais dura, não caber uma pequena parte escura assim como, também Brook, demonstrou fazer quando trouxe seus espetáculos ao Brasil.

Podemos sentir a mão pesada da direção para colocar e sustentar a delicadeza em cena. O espetáculo parece repetir a estética e a interpretação contida de quase uma década. Podemos identificar os mesmos signos. Do figurino às marcações, do tapete no chão à quase total ausência de objetos cênicos, que se repetem a cada nova montagem. O que quase nunca se repete são os atores, sempre jovens convidados para um “novo projeto”.

No geral o que o trabalho da Cia Clara não tem e outros grupos que seguem a mesma linha já desenvolveram são os momentos de ruptura. Uma força contrária ao excesso de doçura. Em “Coisas Invisíveis” e outros espetáculos do grupo sentimos falta de uma explosão, um grito, um clímax, um certo descontrole que poderá potencializar as boas peças, tornando-as mais críveis.